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terça-feira, 25 de maio de 2010

Violência e Desaparecidos - Pe. Geraldo Labarrère Nascimento, SJ


Inicialmente, queria dizer que falar de violência é falar de complexidade. Uma violência não pode, facilmente, ser comparada com outra.
A maior violência é aquela que nós sofremos. Só nós sabemos em que circunstâncias, de maior ou menor fragilidade, a vivenciamos. Certamente que os parâmetros objetivos têm peso decisivo na valoração da violência, especialmente daquela sofrida coletivamente, mas são, sem dúvida, as medidas internas, subjetivas, é que podem dizer o tamanho da dor de cada um/uma.
A dor provocada pelo ´desaparecido´, por exemplo, é imensa. O vazio que eles deixam, não tem medida. É como se fosse um enterro começado e que não tem fim. Ninguém é capaz de considerar morto um ente querido que desapareceu, ainda que todas as evidencias e variáveis levem à conclusão de seu passamento. Sem a prova do corpo, respeitado e enterrado, não se pode aceitar a morte. Sempre haverá uma chance de retorno.
A espera interminável vai matando pouco a pouco. Desaparecer é pior que morrer, porque não há ponto final (Deire Assis, O Popular, 31.01.10). Maria das Graças Soares Lucena Rodrigues, participante do COMITÊ GOIANO PELO FIM DA VIOLÊNCIA POLICIAL, mãe de Murilo Soares, 12 anos, que o diga. Murilo desapareceu dia 24 de abril de 2005, depois de uma abordagem policial, e seu quarto, depois de 5 anos, permanece do mesmo jeito, diz a mãe, num misto de esperança e dor.
Desaparecimentos não têm que acontecer. No entanto, as notícias vão saindo na mídia e o fato se torna banal. Como os desaparecimentos em Luziânia/GO, no inicio deste ano. Coincidências: seis jovens, entre 13 e 19 anos, na mesma cidade, no mesmo bairro, Estrela D´Alva, na mesma época, em questão de dois meses. O bairro não parou, a cidade não parou. Por quê? Os fatos não são alarmantes? [ Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente, determina investigação imediata em caso de desaparecimento de criança ou adolescente.]
Eles são a ponta de um ´Iceberg´ de enorme tamanho. No Brasil, conforme fontes do Ministério da Justiça, em levantamento realizado em 1999, por ano, desaparecem cerca de 200 mil pessoas . Dizendo somente dos casos registrados. É mais que uma guerra.
Está em fase de implantação, na Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, um sitio de registro e controle nacional de desaparecidos. Contudo, nessa fase, o rigor e a confiabilidade não são as características principais, apesar de ser um grande avanço institucional. Por outro lado, o interesse dos pesquisadores é dispersado pela multiplicidade dos motivos do desaparecimento: brigas familiares, tentar a vida em outra parte, falta de condições de subsistência, rompimento de afetos, doença mental, tráfico de órgãos, trafico de pessoas, prostituição masculina e feminina, pedofilia, tráfico de drogas, abordagem policial... Em alguns casos trata-se da eliminação das pessoas e noutros, da fuga/mudança desejada ou perca de orientação geográfica. Não é tão simples distinguir uns casos de outros.
Ao fim e ao cabo, na sociedade moderna, ninguém tem permissão de agredir, torturar, matar ou desaparecer com pessoas. Nem mesmo a polícia, entenda ela a si mesma, como quiser, conforme se diz noutra parte deste artigo.. Apesar de ter uma parcela de comerciantes, empresários e outros grupos sociais que apóiem este tipo de prática agressiva e violadora dos direitos individuais e sociais (Lourival Rodrigues, oc.).
Apóiam as arbitrariedades somente enquanto voltadas para outras camadas da população que não a sua. Apóiam uma polícia patrimonialista, que proteja seus bens, e com isso reduzem o órgão público a um mero subalterno particular, cuidador de seus interesses, próprios e escusos.
Todavia há milhares de policiais honestos, competentes, dedicados, que arriscam suas vidas em condições técnicas e organizacionais precárias, não recebendo o reconhecimento que merecem (SOARES, 2004, pág. 131, citado por Lourival Rodrigues, 2010 ).
Porém, alguns jovens do Hip Hop de Goiânia, discordam. Sendo eles um dos grupos que mais sofrem esse tipo de ação violenta e desrespeitosa, acham que, se uns policiais fazem este abuso de autoridade na abordagem (muitas vezes retiram as identificações dos uniformes, e quando não as retiram, mandam as pessoas ficarem de cabeça abaixada ou de costas para eles; às vezes colocam as pessoas deitadas no chão e pisam na sua cabeça ou no pescoço; tocam e apertam os órgãos genitais; há casos de rondas que circulam com as luzes apagadas, cobrando ´pedágios´; existindo até relatos de assassinatos precedidos de visita de um carro policial; os que reagem são ameaçados, apanham, são agredidos, sofrem torturas, são espancados, anotam os endereços; ligam ameaçando as famílias... ) e os outros colegas não reagem para impedir esta prática, passam a ser coniventes com o crime e, portanto, criminosos também. Quem vai poder discordar desta tese, que os coniventes com o crime passam a ser criminosos da mesma natureza, se a lei é que o diz?
Fica difícil a situação do instituto policial. Ao admitir, com frequência, a convivência com o crime interno, praticado por seus componentes, considerando especialmente os de alto escalão hierárquico, que mais influência podem ter sobre a tropa, vão solapando a credibilidade da guarnição e deixando disseminar a doença interna da mentira, por exemplo.
Quem é que pode aceitar hoje em dia, sem muitas dúvidas e suspeitas, as alegações de: resistência à prisão, tentativa de fuga, desrespeito à autoridade, troca de tiros, não obedeceu à ordem de parar, estava na posse de drogas e armamento, legitima defesa... como explicações, no boletim de ocorrências, para um provável óbito? Quem poderá aceitar, como justificativa, para uma invasão de domicílio nas periferias das cidades, sem mandato judicial, a alegação de que estavam na perseguição de um suspeito perigoso? Se lá dentro do domicilio, depois, nota-se o desaparecimento de objetos e coisas de valor, se as pessoas da casa dizem ter sido agredidas? Ou estas alegações são tentativa de obstrução da atividade policial?
Muitas vezes, em debates e palestras, depois que digo algo sobre a criminalidade na polícia, que está crescendo muito, os companheiros de mesa, às vezes do mais alto escalão militar ou civil, em nome de defender a Instituição, dizem que estou tentando denegrir a Polícia.
O que denigre a Polícia são as ações dos próprios membros da corporação e não umas simples palavras. Palavras não depõem contra a Polícia, mas incentivam a que bons policiais tenham uma reação interna, forte, organizada, estrutural, e tentem salvar o organismo através de uma mudança sistêmica radical, porque, sem isso, estará cavando o seu próprio fim, como já aconteceu em outras partes .
Vejamos. Publico aqui a notícia que saiu esta semana:
“O juiz Jesseir Coelho de Alcantara, da 1ª Vara Criminal de Goiânia, mandou a júri popular, nesta segunda-feira (29/março/2010), o policial militar Alessandri da Rocha Almeida, por homicídio qualificado (com uso de recurso que impossibilitou a defesa da vítima), contra Wagner da Silva Moreira.”
Este caso refere-se a um dos crimes no massacre do Parque Oeste Industrial, acontecido em fevereiro de 2005. Na época, o policial Alessandri era tenente e comandava uma parte da tropa. A acusação que pesa sobre ele é de “homicídio qualificado”. Mesmo sob esta suspeita, por mais de uma vez, ele foi promovido por antiguidade e “merecimento” e, a partir de 02/02/2010, é Major PM RG 22541. É dificílimo, não preciso aqui explicar as razões, um processo comum caminhar até o envio a Júri Popular. Imaginem a dificuldade de um processo contra um militar de alta patente. Louvada seja a decisão do juiz.
O corporativismo é muito forte em qualquer parte. Na caserna ele não é menor. Ele unifica gerações pela semelhança de suas escolhas. O nazismo exterminou 6 milhões de judeus, no holocausto, e a isto chamou de “A Solução Final” . Eliminar 6 milhões de vidas, para eles, foi ´A Solução Final´. Desse mesmo jeito, nesse mesmo norte de compreensão, as forças policiais do Estado de Goiás, chamaram o massacre do Parque Oeste Industrial (fevereiro/2005), contra cerca de 14 mil pessoas indefesas de nossa cidade, de “Operação Triunfo”. Existe alguma semelhança de mentalidade na concepção das duas ações?
No caso dos alemães, somente anos depois é que se pôde perceber que o objetivo, desde o início, era o extermínio dos judeus. No nosso caso, o objetivo era ou é o extermínio dos empobrecidos? Conforme diz Jacqueline Muniz , a Policia Militar, ao conceber-se como militar, alimenta algumas concepções equivocadas sobre sua missão e função, tais como: corpo de combate, operação de guerra, enfrentamento e eliminação de inimigos... Por isto, possivelmente, para a solução de seus problemas, trabalha com a hipótese do massacre e do extermínio. Ela não se entende como uma força civil, que possa adotar procedimentos civis, para os conflitos civis. Sendo assim, entendendo-se como força militar, preparada para uma guerra, comete o absurdo e a vergonha de classificar como “triunfo”, o massacre e os assassinatos que provocou no Parque Oeste Industrial, em Goiânia.
O Governo do Estado, a Secretaria de Segurança Pública, a Policia Militar do Estado de Goiás e seus oficiais e soldados tratarem ao povo simples brasileiro, como o fizeram naqueles dias fatídicos de fevereiro de 2005, realmente chega às raias do crime de lesa humanidade. O provocador do conflito é visto como ´inimigo´, e, deve morrer.
O holocausto não foi coisa do passado, pois todas as características permanecem hoje no extermínio dos empobrecidos, a ponto de suscitar uma campanha nacional “A Juventude Quer Viver, Contra o Extermínio” [ Antes de continuar a leitura veja o vídeo “A juventude quer viver” http://www.youtube.com/watch?v=WK8xnnsa9OY ]. Holocausto não foi uma época, é uma mentalidade. Pior que a lei do Talião: “olho por olho e dente por dente”. Pior porque o entendimento é – eu posso matar, nós podemos matar. É a exacerbação do egocentrismo. Na lei do Talião trocava-se olho por olho, ou seja, admitia-se a reciprocidade de violência. Hoje em dia não, só a polícia pode matar sem se tornar criminosa.
Para os alemães de hoje, século XXI, fica uma pergunta inquietante, que pode ser notada no coração de muitos deles, quando vamos lá em visita: como é que meus pais e meus avós, sabendo do que ocorria com os judeus e com outros grupos de pessoas: homoafetivos, negros, deficientes... concordaram com o extermínio? não se organizaram para impedir o massacre? Para nós também ficará esta mesma pergunta gritante: como é que não fazemos nada para impedir o extermínio dos empobrecidos, dos jovens, da população LGBTT?
E, se fazemos, é tão pouco e tão desarticulado, que não surte efeito algum. Espero, e faço votos, que nossos netos nos cobrem, energicamente, tudo isso, mostrando sua indignação contra qualquer desrespeito à vida, para que não estejamos ajudando a construir uma civilização de melancólico extermínio da humanidade.
Um outro mundo é possível, graças a Jesus Cristo, Senhor da Vida e da História, que nos alimenta, conforta, e, mostrando-nos o exemplo, dá a sua vida para a vida de todos e todas.
1 Amanda Boldeke, pesquisadora do sitio DESAPARECIDOS DO BRASIL(www.desaparecidos.com.br), onde se pode encontrar fotos de muitos desaparecidos/as do Brasil, entre eles os de Goiás. Os mais recentes ainda não.
2 Lourival R. da Silva, em VIOLÊNCIA OU VIDA SEGURA, 2010, pág 1.
3 Fechamento da Secretaria Estadual de Segurança Publica do Amazonas, em 1989, por decreto do governador, não suportando a pressão de diversos movimentos sociais e, inclusive, do General comandante da Amazônia, que teve um de seus oficiais, morto pela polícia.
4 Jacqueline Muniz, pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Cândido Mendes no Rio de Janeiro. Antropóloga e cientista política. Trabalhou como diretora geral de pesquisa na Secretaria de Segurança Pública do Rio. Desenvolveu vários projetos de pesquisa sobre segurança pública e participação civil no Movimento Viva Rio, no ISER (Instituto de Estudos da Religião) e como participante do Centro de Estudos Estratégicos da UFRJ. Nos últimos anos, tem ministrado palestras e cursos de pós-graduação ou técnicos para as Polícias Militares de diversos estados brasileiros.
•Pe. Geraldo Marcos Labarrère Nascimento, jesuíta Diretor da Casa da Juventude Pe. Burnier Membro do Comitê Goiano Pelo Fim da Violência Policial diretoria@casadajuventude.org.br

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